Entre a desconfiança e a esperança: o papel das periferias nas eleições
Clédisson Júnior é antroṕólogo.
As eleições municipais de 2024 estão em curso e trazem à tona um cenário político desafiador, que coloca as periferias urbanas no epicentro de uma disputa que vai além da simples escolha de novos governantes das nossas cidades.
O futuro das cidades brasileiras não só está em jogo, assim como também uma profunda reflexão sobre como a política é concebida e praticada nos territórios historicamente marginalizados.
Por décadas, as periferias foram tratadas como áreas de exclusão, lembradas apenas durante os períodos eleitorais. O Estado, quando presente, manifestava-se predominantemente por meio da repressão policial, deixando um vácuo de assistência e desenvolvimento. Nos últimos anos, os territórios se tornaram laboratórios de inovação política, onde novas formas de ação coletiva e de engajamento político emergiram, à margem das instituições e do sistema politico.
Todo esse processo reflete um profundo sentimento de desconfiança em relação às estruturas políticas convencionais. Nas periferias, há uma percepção cada vez mais consolidada de que o sistema eleitoral não consegue responder às demandas concretas de suas populações. As promessas de inclusão social, de melhorias na infraestrutura ou de redução da violência raramente se concretizaram. Como resultado, o eleitor periférico, sobretudo os jovens, tem buscado alternativas que vão além do voto tradicional. Isso explica o surgimento de candidaturas coletivas e de movimentos autônomos, que não se limitam a uma lógica eleitoral imediata, mas buscam reconfigurar o próprio sentido da representação política.
Embora essa dinâmica represente uma reação necessária e extremamente legitima à insatisfação com o status quo político, é preciso desenvolver um olhar mais criterioso, que não desconsidere os desafios e limitações inerentes a essas iniciativas. A estrutura política brasileira, marcada por profundas desigualdades, tem imposto obstáculos significativos à efetiva transformação por meio dessas novas formas de representação. Desse modo , as candidaturas coletivas, embora inovadoras, enfrentam limitações dentro do sistema político vigente. A falta de recursos, o o aos meios de comunicação e a resistência das estruturas partidárias tradicionais podem comprometer a eficácia dessas iniciativas.
Toda essa transformação tem apresentado desafios significativos tanto à esquerda quanto à direita. As forças políticas historicamente institucionalizadas ainda lutam para compreender e dialogar com as novas formas de ampliação do espaço democrático. Enquanto isso, a direita e a extrema direita avançam em sua estratégia de conquistar o eleitorado periférico, em geral, ancoradas por alianças estratégicas com igrejas neopentecostais. Essas instituições religiosas, para além do e espiritual, coordenam as principais redes de apoio social nas periferias, suprindo carências deixadas pelo Estado e fortalecendo a presença política conservadora nesses territórios.
Paralelamente, é crucial abordar a maneira como o conceito de empreendedorismo tem sido promovido nas periferias, frequentemente associado a uma lógica neoliberal que enfatiza soluções individualistas para problemas coletivos. O incentivo ao empreendedorismo, apresentado como caminho para a ascensão social em um contexto de desemprego e precarização do trabalho, ignora as barreiras estruturais enfrentadas pelas populações marginalizadas.
Essa narrativa desloca a responsabilidade do Estado para o indivíduo, omitindo a falta de políticas públicas eficazes que abordem as causas profundas da desigualdade. O discurso do “empreendedor de si mesmo” pode reforçar a ideia de que o sucesso depende exclusivamente do esforço pessoal, desconsiderando fatores como o desigual a recursos, educação de qualidade e oportunidades reais de desenvolvimento. Dessa forma, o empreendedorismo é utilizado como ferramenta para perpetuar uma lógica de mercado que beneficia poucos em detrimento da maioria.
A resposta para contrapor essa estratégia consiste na defesa de um Estado forte e atuante nos territórios. Quando o Estado cria políticas que promovem a autonomia econômica nas periferias, o empreendedorismo pode ser positivamente potencializado. Com o poder público investindo recursos financeiros, desburocratizando e capacitando a população periférica, o empreendedorismo torna-se uma ferramenta eficaz para inovação, geração de emprego e empoderamento das comunidades marginalizadas. Assim, é fundamental combinar o potencial do empreendedorismo com uma atuação estatal robusta, garantindo que os benefícios econômicos também alcancem o conjunto das periferias das nossas cidades.
A ascensão do conservadorismo nas periferias reflete uma disputa mais ampla pelos rumos da política nacional. Enquanto setores conservadores articulam discursos que combinam valores religiosos com promessas de ordem e prosperidade individual, a esquerda enfrenta o desafio de reconstruir sua conexão com as demandas populares desses territórios. Movimentos sociais e coletivos periféricos têm promovido uma agenda que busca ir além do assistencialismo, clamando por uma presença estatal que não se limite à repressão, mas assegure direitos básicos e promova justiça social.
Diante desse cenário, nestas eleições, a periferia assume um papel protagonista, que pode resultar na concretização de mudanças efetivas na sociedade, mas tais mudanças dependerão da capacidade de construir estratégias que enfrentem as raízes das desigualdades e questionem as narrativas neoliberais que têm orientado as políticas públicas nas últimas décadas.
É imperativo que as instituições políticas e a sociedade em geral reconheçam a necessidade de uma abordagem que combine participação popular, fortalecimento do Estado em suas funções sociais e crítica ao modelo neoliberal que tem aprofundado as disparidades sociais. A promoção de um empreendedorismo crítico, que reconheça as limitações estruturais e busque empoderar coletivamente as comunidades, pode ser um caminho mais promissor do que a simples valorização do empreendedorismo individualista.
As manifestações culturais das periferias, como o samba, rap, o funk e os saraus de poesia, continuam a ser ferramentas poderosas de mobilização e conscientização. No entanto, transformar essa energia em mudanças políticas concretas requer enfrentar os desafios impostos por um sistema político resistente a transformações profundas. A desconfiança em relação às estruturas tradicionais é compreensível, mas a construção de alternativas efetivas exige estratégias que vão além do imediato e do local.
As eleições de 2024 oferecem às lideranças politicas tradicionais uma oportunidade para reavaliar o papel das periferias no cenário político brasileiro, provocando um diálogo franco sobre os desafios e possibilidades de transformação. A construção de uma democracia inclusiva e justa requer não apenas o reconhecimento das vozes periféricas, mas também a implementação de políticas que enfrentem de forma contundente as desigualdades sistêmicas e resistam às soluções simplistas propostas pelo neoliberalismo.
Ignorar essas questões seria um erro histórico que o Brasil não pode continuar cometendo. A verdadeira transformação será fruto da abertura e do alargamento das instituições políticas e da capacidade coletiva de enfrentar críticas e construir caminhos que promovam justiça social e inclusão real. As periferias brasileiras estão sinalizando nitidamente que não aceitarão mais o papel de coadjuvantes. Cabe agora às lideranças do campo democrático compreender que o fortalecimento da democracia depende da inclusão efetiva de todos os seus cidadãos, especialmente daqueles que historicamente foram silenciados.